A história por trás da composição ‘Company of nigthmares’ que homenageia Billie Holiday

Sucesso nos Estados Unidos na voz de Billie Holiday, em 1941, a canção “Gloomy sunday” (“Domingo sombrio”), lançada pelo pianista húngaro Rezsõ Seress e o seu amigo e poeta Laszlo Javor, em 1933, ficou também conhecida como a “Canção do suicídio” ou “Música húngara suicida”, porque foi supostamente responsável pelo suicídio de cerca de 100 pessoas nos EUA, em 1935.

“Houve quem atribuísse casos de suicídio nos EUA e na Grã-Bretanha à versão em inglês de ‘Gloomy Sunday’ porque jovens fãs de jazz teriam ficado deprimidos depois de ouvir a versão da música cantada por Billie Holiday. Parece que a proibição foi especificamente direcionada a essa versão”, disse Pellon.

Na realidade, algumas tragédias ocorreram na vida dos compositores. O próprio Seress cometeu o suicídio em 1968, enforcando-se no hospital em que estava internado, depois de ter tentado a própria morte jogando-se pela janela do seu apartamento e ter sobrevivido à queda. Tudo indica que o compositor vivia desolado pelo fim de um romance malsucedido, e que acabou também com suicídio da sua namorada, por envenenamento.

A canção de Seress e Javor inspirou a composição “Company of nigthmares” (“Companhia de pesadelos”), em homenagem a Billie Holiday, com letra de Fernando Pellon e melodia de José Reinaldo Marques, gravada pela cantora Andrea Dutra no álbum “Medula e osso”, lançado em abril de 2023.

E Billie Holiday chamou a atenção de Fernando Pellon, na década de 80, após ele ouvir uma belíssima interpretação da cantora Eliete Negreiros ─ que era ligada à Vanguarda Paulista ─ na canção “God Bless the Child” originalmente gravada por Billie. “No esforço de conhecer melhor a obra dessa cantora e compositora negra norte-americana, acabei ficando muito impressionado com a beleza de ‘Gloomy Sunday’”, contou o compositor.

Canção melancólica

“Gloomy sunday” é uma canção melancólica que retrata um mundo de dores e amarguras, e chegou ser censurada e só foi liberada e traduzida para o inglês em 1936. Quando ouviu pela primeira vez a composição de Seress e Javor, imediatamente uns versos especialmente chamaram a atenção de Fernando Pellon:

“Domingo é sombrio / Minhas horas são de insônia /Querida, as sombras / Com quais eu convivo são muitas /Pequenas flores brancas/ Nunca irão acordá-la / Não onde a carruagem negra / Da tristeza levou você / Anjos não pensam / em um dia devolver você / Ficariam eles zangados / Se eu pensasse em me juntar a você?”

A partir desse primeiro contato com o universo das canções interpretadas por Billie Holiday, e pensando em um domingo sombrio que ele encontrou na obra musical dos compositores húngaros, e que também o tinha deixado muito impressionado, Fernando Pellon se inspirou e escreveu os versos de “Company of nigthmares”:

“Na escuridão / Destes dias chuvosos / Eu preciso da solidão para sobreviver / Começar a entender
algumas das coisas / que você diz / Eu não sou muito bom / Em ficar quieto em seus braços
E ainda prefiro / A mera companhia de pesadelos (company of nigthmares)”

“Nesse caso, o eu lírico (uma referência à artista Billie Holiday) prefere que seus pesadelos sempre o assombrem (em contraponto ao que ocorre em ‘Gloomy Sunday’)”, explicou Fernando Pellon.

Coragem estética

Esteticamente, Fernando Pellon é um compositor cujos versos também manifestam uma grande afinidade com dores e amarguras. E ele explica por quê. “Torquato Neto já dizia que ‘um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo’. Décio Pignatari, por sua vez, afirmava que ‘na geleia geral brasileira, alguém tem de exercer as funções de medula e de osso’. Então, é a isso que me proponho: o atrevimento de sujar as mãos de graxa”, revelou o poeta com bom humor que lhe é característico.

Sobre a homenagem a Billie Holiday Fernando Pellon explicou que se trata de marcar “a coragem estética” da cantora que ele encontrou, por exemplo, na canção “Strange Fruit”, composta como um poema escrito por Abel Meeropol (um professor judeu e comunista de colégio do Bronx, com o pseudônimo Lewis Allan), sobre o linchamento de dois homens negros. “Billie Holiday disse que temia retaliações por cantar essa canção. Todavia, o fato de as imagens de ‘Strange Fruit’ lembrarem seu pai fez com que ela continuasse a incluí-la em seu repertório”, ressaltou o compositor..