Com o belíssimo samba “Ruínas da cidade”, gravado pelo compositor e sambista Moacyr Luz, no ano passado, Fernando Pellon faz uma reflexão a respeito das intervenções urbanas implementadas na cidade do Rio de Janeiro, a partir da inauguração do metrô no final dos 1970.
Em “Ruínas da cidade” Pellon passeia, em tom nostálgico, por alguns dos bairros mais tradicionais da cidade. E na letra do samba não poupa críticas ao que ele classifica de “modernização conservadora”, que se tornou um processo muito característico do período da ditadura militar (1964-1985).
“O metrô do Rio de Janeiro foi inaugurado, em 1979, como resultado da modernização conservadora que caracterizou o desenvolvimento econômico do país no período da ditadura militar. Como não poderia deixar de ser, o processo de implantação foi autoritário e resultou na demolição, dentre outras construções do início do século XX, do Palácio Monroe, hoje Praça Mahatma Gandhi”, lembrou o compositor.
“Paisagem de tristeza, pois só há saudade, onde habitou beleza, cada parede ao chão, é uma negativa, à memória do direito de estar viva”, diz um dos versos do samba, com o qual o compositor faz um questionamento: “Quanto de história se perdeu nessa intervenção urbana? A cada parede ao chão, quanta memória afetiva se foi para sempre?”
Fernando Pellon explica a mensagem que ele quis passar com esses versos, e por que as obras e os deslocamentos geográficos que elas provocaram o incomodaram tanto. “A construção de muitos viadutos também contribuiu para a demolição de quarteirões inteiros em partes antigas da cidade. Assim, acompanhar a cidade destruída, progressivamente, por tais obras era como contemplar minhas próprias vísceras”.
Em outro trecho da letra de “Ruínas da cidade” os bairros do Catete, Cidade Nova, Glória e São Cristóvão são citados como exemplo do remanejamento geográfico que tanto incomodou o compositor.
São Cristóvão, bairro imperial
Cidade Nova, quanta tradição
A Glória e o Catete
São lembranças no meu coração
Consternado por tanta destruição
“Esses bairros estavam na rota do metrô e no caminho dos viadutos”, afirmou o compositor. É a hidra de concreto que ele cita na letra do samba como “capricho leviano do progresso”.
A cidade e a música
Fernando Pellon é um cidadão e compositor integrado com as manifestações culturais produzidas no espaço urbano onde vive, e acredita que a música é uma arte que possibilita uma relação muito íntima com a cidade, devido às suas origens e à capacidade criativa de quem a produz.
“O exemplo que mais me interessa é a região da Cidade Nova, que foi residência de Tia Ciata, uma das responsáveis pela consolidação do samba carioca e primeira-dama das comunidades negras da Pequena África”, explicou.
A região citada pelo compositor foi uma das mais atingidas pela histórica reforma comandada pelo então prefeito Pereira Passos, que provocou um dos maiores deslocamentos geográficos e de humanos pobres que atingiu a cidade do Rio de Janeiro, no início do século passado, e que de tão radical foi apelidada de “Bota-Abaixo”.
“É no espaço urbano que se torna concreta a terrível desigualdade social que caracteriza o Brasil desde sempre. Como letrista, tenho interesse em tratar poeticamente essas questões”, observou Fernando Pellon.
Perdas simbólicas
Para muitos pesquisadores, além dos impactos geográficos as grandes obras também provocaram uma grande reconfiguração das atividades artísticas musicais no Rio de Janeiro. Por meio do olhar percuciente com que enxerga a cidade e a arte musical que nela se produz, Fernando Pellon também tem uma opinião formada a respeito desse processo.
“Esses deslocamentos populacionais demandaram um esforço de resistência cultural das pessoas impactadas, para reconfigurar o que se perdeu simbolicamente. Tal processo demandou criatividade em sua execução”, disse o compositor.
Nesse contexto, o samba “Ruínas da cidade” revela que a produção de Fernando Pellon como letrista “visa a somar esforços à resiliência cultural” da população carioca no espaço cultural e geográfico.
Foto: Blog Rio Antigo.