Nos anos 1980, ainda sob o regime da ditadura militar (1964-1985), surgiram no Brasil, mais especificamente no Rio e em São Paulo, dois movimentos artísticos musicais, por onde circularam alguns dos mais criativos compositores e músicos independentes daquele período. Em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o centro dessa efervescência criativa era a Malta da Areia, coletivo de compositores que inicialmente se reunia na localidade conhecida como Ponta da Areia.
A quatrocentos quilômetros do Rio de Janeiro, na capital paulista, nesse mesmo período, quem se destacou foi a Vanguarda Paulistana, reduto de músicos que se apresentavam no Teatro Lira Paulistana, no bairro de Pinheiros, e transformaram aquele espaço no principal ponto de referência de músicos independentes ávidos por um local onde as suas músicas fossem ouvidas com atenção sem a interferência de quaisquer tipos de burocracia ou poder exercido pelas gravadoras nos seus processos criativos, e, principalmente, também, para fugir da censura.
“Era difícil, pois a censura federal ainda causava muito embaraço à produção artística”, disse Fernando Pellon, um dos integrantes do coletivo Malta da Areia, referindo-se à repressão sofrida na época. “O principal objetivo do grupo era pesquisar, discutir e criar música popular brasileira, em meio a essa atmosfera complicada”, completou. Esse foi o ponto comum que acabou aproximando Fernando Pellon do músico Laert Sarrumor, do conjunto Língua de Trapo, que foi um dos destaques da Vanguarda Paulistana.
Laert conheceu Pellon em shows que o Língua de Trapo realizava no Rio, nos anos 80. “O Pellon costumava ir assistir, com a esposa Lili Rose e os amigos Fátima Lannes e Roberto Bozzetti (que integravam o Malta da Areia), e vinham falar conosco no camarim após o espetáculo. Logo ficamos amigos e tive conhecimento de seu trabalho musical e do disco. A identificação e admiração foram recíprocas”, afirmou.
Em 1985, o Língua de Trapo convidou o compositor para dar uma canja no show de lançamento do LP “Nova retórica”, realizado no Teatro Ipanema. E foi assim, que pela primeira vez, o compositor, teve a chance de apresentar o humor característico das suas composições, ao lado de uma banda que também se destacava pela sua irreverência e semelhante senso crítico.
Ao recordar essa aproximação, Laert disse que foi durante uma temporada de algumas semanas no Teatro Ipanema, em que o Língua de Trapo resolveu convidar alguns artistas independentes da cena carioca para canjas. “Além do Pellon, convidamos também a cantora Clara Sandroni e o grupo O Espírito da Coisa. As participações de Pellon foram hilárias, ele entrava fingindo ser cego e cantava algumas músicas, revelando depois que enxergava, é claro”.
Essa interação artística acabou se estendendo até o momento em que o selo fonográfico Lira Paulistana, que lançou álbuns do Língua de Trapo, e de outros autores a Vanguarda Paulistana, distribuiu o disco “Cadáver pega fogo durante o velório”. “Houve uma identificação mútua entre Pellon e o Língua (Língua de Trapo), pela natureza inusitada e irreverente dos trabalhos. A distribuição pelo selo do Lira (Lira Paulistana), sem dúvida, deu aval à sua obra e ajudou a divulgá-la nacionalmente”, explicou Laert.
Fernando Pellon teve a composição “Carne no Jantar” cantada em shows do Língua de Trapo. “Em 1990 eu apresentei um show solo chamado ‘Perigozo’, com temática de músicas soturnas e de terror, e fiz um arranjo blues para o samba do Pellon. Depois, nós a incorporamos também ao repertório do Língua, em apresentações da banda. Pellon assistiu a um show nosso no Jazzmania, em 91, em que tocamos a música e ele aprovou o arranjo e a interpretação”, lembrou o músico.
Outra parceria que deu certo com o membro da Vanguarda Paulistana com integrantes do Malta da Areia, foi a atuação, em 1987, de Laert como protagonista no curta-metragem experimental “É Miquelina, minha mulher”, com roteiro e direção de Fátima Lannes. Ele contou sobre essa experiência.
“Fiquei amigo da Fátima e do Roberto (seu marido, na época) alguns anos antes e quando ela foi rodar o filme me chamou para ser o protagonista. Lembro que a ideia do filme partiu da música ‘Flores de plástico ao amanhecer’, do Pellon. As cenas acontecem ao som de músicas dele e o filme só tem uma frase falada. Além de mim, estão no elenco Suzana Saldanha e Jayme Periardi”, recordou Laert.
Já faz um bom tempo que Laert Sarrumor não se encontra com Fernando Pellon, mas disse que já ouviu os seus discos mais recentes “Aço frio de um punhal” (2010) e “Moribundas vontades” (2016). “Pellon continua craque. Quase fui ao show de lançamento (‘Aço frio de um punhal’), num bar da Tijuca, mas acabou não dando certo.
E como o humor é um ponto em comum da produção artística desses dois importantes músicos brasileiros, Laert não perdeu a oportunidade para brincar. “Pellon é carioca de coração. Ele nasceu em Barbacena, Minas Gerais, cidade que abrigou por muito tempo um dos manicômios mais sombrios e desumanos que se tem notícia. Até para nascer, ele escolheu um lugar macabro!”, risos.
. Clique no link e ouça a gravação do Língua de Trapo da música “Carne no jantar” .