É muito comum quando gostamos da música de um determinado compositor, e que, ao escutá-la, ela crie em nosso imaginário pensamentos distintos e agradáveis ao mesmo tempo, que, em nós desperta uma curiosidade enorme de descobrir de onde veio tanta inspiração.
Foi nesse contexto que garimpamos na discografia do compositor Fernando Pellon mais uma história do seu processo criativo que também merece ser contada. A música da vez é “Elzira, a morta virgem”, composta em parceria com o cantor e violonista Paulinho Lêmos.
A composição é um samba gravado pela cantora Rose Maia, no álbum Moribundas vontades, que Fernando Pellon lançou em outubro de 2016. A letra nasceu depois da gravação do álbum Aço frio de um punhal (2010), inspirada em um livro que narra a história de uma jovem, que, frustrada por não poder se casar com o homem que amava, escolheu a morte e deu fim à própria vida.
– “Elzira, a morta virgem” é o título de um romance de grande sucesso escrito por Pedro Ribeiro Vianna, no final do século XIX, que conta a história de uma menina rica do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, que escolheu a morte por não poder se casar com o homem que verdadeiramente amava, contrariando assim a vontade de seus pais -, contou Fernando Pellon.
De acordo com a história narrada no livro, “Elzira contraiu tuberculose e fingia tomar os remédios, para, às escondidas, encher lenços e lenços com sangue”, o que, na opinião de Fernando Pellon, com esse gesto, ela acabou “colocando em xeque, a seu modo, as regras sociais vigentes”.
Conflito
O livro de Pedro Vianna foi citado pela professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Alessandra El Far, pesquisadora do campo literário, que afirmou que a narrativa dramatizava o conflito que muitas famílias passavam com o declínio do paternalismo, em que os filhos queriam fazer suas escolhas.
Na opinião de Fernando Pellon, “o romance trata de um fato surpreendente que extrapolava a ordem cotidiana, instaurando, na opinião da citada professora, mesmo que momentaneamente, o caos e a completa desordem”.
O compositor lembrou que o livro é mencionado na canção “Mamãe Coragem”, de Caetano Veloso e Torquato Neto, no disco Tropicália, cuja letra narra que o filho deixa a mãe para buscar uma nova vida em outra cidade e recomenda a leitura do romance “Elzira, a morta virgem”. Mas, fez questão de destacar, que, na resenha que a professora Alessandra El Far fez do romance ela destacou que “agora os filhos não precisam mais chamar a morte para reivindicar suas escolhas”.
Inspiração
“A história de dois jovens que sentiram dentro d’alma o incêndio de uma paixão violenta, que os levou quase à loucura. Quantas Elziras não existem nessa vida?”. Foi esse trecho registrado no prefácio do livro que chamou a atenção de Fernando Pellon no romance e o levou a escrever letra da sua composição.
– Eis, então, uma questão fundamental, qual seja, em quantas Elziras mundo afora falta a coragem para arcar com as consequências de uma ação imponderada que atropelava o curso esperado da vida? É sobre essas outras Elziras que eu falo na letra de minha autoria -, explicou o compositor.
Sua vida era regrada
Repetição de momentos
Nada brusco ou irregular
A mesma sucessão de eventos
Como se fossem batimentos…
– A Elzira de minha letra segue, estritamente, as regras e normas da sociedade vigente, sobretudo por acreditar nelas, preenchendo sua vida com experiências mornas e cotidianas, restritas ao ambiente doméstico, como pode ser constatado nos meus versos. Por princípio, ela rejeita dramas emocionantes e conflituosos, repletos de emoções violentas e acontecimentos imprevisíveis -, afirmou.
Talvez as perturbações
De ordem moral ou estética
Pudessem lhe alterar o ritmo
Ou mesmo levar à morte
Numa emergência médica
Diálogo
Fernando Pellon disse que gosta muito do samba “Elzira, a morta virgem”, porque ele lhe deu mais uma oportunidade de “dialogar, de certo modo, com o álbum manifesto Tropicália”.
O compositor elogiou a interpretação da cantora Rose Maia e falou também da melodia, que tem a assinatura de Paulinho Lêmos, seu parceiro de longa data.
– Como sempre, o Paulinho Lêmos acertou em cheio na escolha do samba como solução melódica para a letra. Nada surpreendente, pois ele sempre acerta.