Nós entrevistamos Eduardo Pinheiro, compositor e violonista mineiro, que, atualmente, mora na Alemanha e tem “um amor incondicional pela música brasileira”. Envolvido com a produção do seu primeiro álbum solo, ele arranjou uma brecha na agenda apertada para conversar conosco sobre o que ele acha da obra musical de Fernando Pellon, compositor que ele descobriu há 10 anos, quando escutou pela primeira vez o disco “Cadáver pega fogo durante velório”, por sugestão de uma amiga.
Nesta entrevista, Eduardo Pinheiro contou por que as composições de Fernando Pellon lhe chamaram a atenção. Disse que foi atraído pelo repertório musical do autor de “Rigidez cadavérica”, porque são canções que fogem do senso comum, tirando as pessoas da zona de conforto, com letras contundentes e “anárquicas” que abordam os “extremos do amor e da morte”.
Pergunta – Como você tomou conhecimento do trabalho musical do Fernando Pellon?
Eduardo Pinheiro – Há cerca de 10 anos eu conheço o trabalho do Fernando Pellon. E uma amiga que estava de passagem por Belo Horizonte se hospedou na minha casa, e nós trocamos figurinhas sobre gostos incomuns de samba, o lado B do samba, por assim dizer, com temáticas mais inusitadas, como a questão da morte.
Pergunta – E por que abordar esse viés?
EP – É que muitas vezes o samba foca mais a exaltação, o amor, e nós estávamos debatendo sobre essa temática, quando ela me mostrou algumas músicas do disco “Cadáver pega fogo durante velório”. E, aí, eu fui observando. Me lembro que nesse dia eu disse a ela que era fã do Nelson Cavaquinho, que é um compositor em cujos sambas esse tema está sempre presente. Então, a minha amiga me recomendou esse disco do Pellon.
Pergunta – O produtor cultural e roteirista Felipe Ivanicska, para quem você deu aulas de violão, disse que foi você quem o indicou a ouvir as músicas do Fernando Pellon. Curiosamente, você disse a ele para prestar atenção às melodias, e aos arranjos, e não às letras. Por quê?
EP – Na minha relação com o Felipe, ex-aluno meu de violão, nós sempre trocamos muitas ideias sobre música. Eu sempre fui muito antenado mais à música do que à letra, e, talvez, tenha sido por isso que eu pedi a ele que tivesse esse zêlo pela melodia. Por que de fato os arranjos (do disco “Cadáver”) foram muito bem-feitos. E, naquele momento, a nossa conversa foi muito direcionada ao primeiro disco do Fernando Pellon “Cadáver pega fogo durante velório”.
Pergunta: o que lhe chamou tanta atenção nesse disco?
EP – Eu lembro que na época, quando eu olhei a ficha técnica, busquei tentar entender essa produção, de quem eram as composições. Como via sempre o nome do Fernando Pellon assinando as composições imaginei que as harmonias e melodias eram todas dele. Embora, na época, eu nunca tinha ouvido falar no nome dele. Aí, quando eu vi o time da ficha técnica do disco eu percebi que se tratava de uma pessoa de alto calibre musical.
Pergunta – Você sabia que o Fernando Pellon é o autor da maioria das melodias das suas composições, mas que ele não toca nenhum instrumento musical?
EP – Eu não sabia que ele não tocava nenhum instrumento. Fiquei sabendo disso recentemente. Em uma conversa com o Felipe em que ele me disse que conheceu o Fernando pessoalmente, e que ele nem “arranha” um violão direito. É curioso, isso. Muito legal. Parece que ele atua (profissionalmente) em outra área, em outro setor diferente da música (Fernando Pellon é doutor em Geologia, professor, e trabalha na Petrobras). Eu achei isso bem interessante.
Pergunta – O que você acha das letras das canções do Fernando Pellon?
EP – Eu acho as letras fantásticas. Essa coisa de sair do senso comum, da zona do conforto, abordar temas anárquicos, mortíferos, sanguinários ou extremos do amor e da morte, eu acho que tem muito espaço pra isso no cancioneiro brasileiro, e até mesmo internacional.
Pergunta: Não são temas fáceis de serem abordados, não é mesmo?
EP – Considero que são temas mais difíceis de serem abordados, inclusive de serem aceitos pelo grande público. Mas eu acho muito legal quando eu vejo uma letra assim que me impacta, que me deixa pensando como pode ser tão agressiva, ou explícita, violenta ou coisa assim. Entendo que é uma estética totalmente válida, e, em muitos casos, muito bonita.
Pergunta – Qual ou quais músicas do repertório dele você destaca?
EP – Eu me lembro que algumas eu cheguei a tocar em shows com uma parceira com a qual eu tocava em São João Del Rey, no interior de Minas Gerais, uma cidade que é muito boêmia e musical, e que tem uma aura muito legal, e, que, de alguma forma, tem muito a ver com o repertório do estilo do Pellon.
Pergunta: Que músicas vocês tocaram nesses shows?
EP – Lembro que nós tocávamos “Carne no jantar”, e outra música também, cuja letra começa com “Eu ingeri uma dose letal de veneno” (“Moribundas vontades”, gravada no álbum do mesmo nome, em 2016, mas que no “Cadáver”, por causa da censura da ditadura militar, saiu com o título “Com todas as letras”).
Pergunta: Em ambas as letras das músicas que você citou Fernando Pellon mostra o seu estilo inusitado e transgressor de compor. Você concorda?
EP – A primeira vez que eu ouvi isso, eu achei muito forte, bem legal e surpreendente. Um rompimento com o conforto. Você está ouvindo uma música, e, normalmente, não é pego de surpresa com uma frase dessas. Mas essa me pegou. Essa música eu gosto muito, com certeza.
Pergunta: E “Carne no jantar”?
EP – “Carne no jantar” é fantástica! “Tal como Nazareth” também. Pegou na veia fazer um tango brasileiro, na pegada de contar uma história de uma lenda da música brasileira, um ícone do Brasil, sendo abordado de uma forma que poucos sabem fazer sobre esse compositor e pianista (Ernesto Nazareth). Eu acho uma abordagem muito genial.
Pergunta – Mesmo sendo um autor independente, Fernando Pellon já foi muito elogiado por Aldir Blanc, Tárik de Souza e outros críticos renomados da MPB. Qual é a sua opinião sobre isso?
EP – Eu vou ser sincero, o disco que eu conheço bem é “Cadáver pega fogo durante velório”. Eu já ouvi muitas vezes esse disco. Os discos mais novos do Fernando eu ouvi recentemente, porque o Felipe me alertou que ele lançou outras coisas. Eu não cheguei a fazer uma pesquisa da discografia dele antes de ser alertado pelo Felipe. Então, eu escutei esses discos recentemente.
Pergunta: Qual foi a sua impressão?
EP – Durante uma viagem eu me lembro de ter escutado cada um dos discos, mas não foi uma escuta muito refinada. Eu precisaria ouvir outra vez com mais atenção, para poder dizer quais seriam as minhas músicas favoritas.
Pergunta: Mas pelo que você já ouviu seria possível traçar um perfil do Fernando Pellon como compositor?
EP – Eu acho que o esmero, o refinamento, a ousadia, a irreverência, o trato dos arranjos, o cuidado com a produção dá lugar e potência a esse compositor incrível. É mais do que justo, né? Ser elogiado por Aldir Blanc, e, por exemplo, outros grandes autores e críticos. Fez (Fernando Pellon) coisas incríveis que poucos fizeram. É até difícil falar, não tem muitos paralelos. Eu acho que isso acontece quando você vê autores que não têm tantos paralelos.
Pergunta – Depois que ele lançou os seus discos nos streamings, as músicas estão sendo baixadas em várias partes do Brasil e no exterior. Você acha que ele merece essa audiência e reconhecimento?
EP – O fato de a música do Fernando Pello está sendo escutada em países como Tóquio, Canadá, Londres etc. é consequência de uma coisa bem-feita. E aí tem um ponto que é relevante a ser colocado que é o seguinte: quando você envolve artistas de renome na produção de seus discos, isso faz com que a obra ganhe, também, outra dimensão.
Pergunta: Você pode explicar isso melhor?
EP – Não diminuindo a obra em si, mas amalgamando a história. Existe a obra com obreiros que são de alto valor. Por exemplo, a igreja X lá em Ouro Preto é uma obra maravilhosa, feita no século tal, demorou tantos anos para ser construída, o projeto é de X e Y, mas tem ali no meio do altar tem uma escultura do Aleijadinho. Pronto, a igreja vira outra coisa porque tem uma escultura do Aleijadinho no meio.
Pergunta: No caso do disco “Cadáver pega fogo durante velório”, que você conhece bem, quem seria esse “escultor”?
EP – Quando você tem um violão de 7 cordas do Raphael Rabello em uma faixa, esse disco passa a ter um novo valor. Se existem fãs do Raphael Rabello no mundo inteiro eles vão buscar o que ele já gravou. E descobrem que ele gravou muitos discos, e verificam que tem mais um muito bom também. “Incrível, olha que música linda”. E, aí, passam a se perguntar: “Mas quem é esse Fernando Pellon? Deixa eu ouvir as outras coisas dele”. É aí que as coisas se abraçam. Eu acho isso muito legal.
Pergunta – Você pretende continuar incentivando as pessoas ouvirem os discos do Fernando Pellon?
EP – Sim, eu continuo indicando. E indico não necessariamente só para alunos, mas recomendo também para amigos fãs de música. Acho que eu já envolvi muitas outras pessoas com as músicas do Fernando, exatamente por causa dessas temáticas irreverentes. Então, as pessoas que eu considero que têm, assim, também, esse gosto mais irreverente, às vezes, eu recomendo e é tiro certo. O alvo é certo quando eu sinto a característica da personalidade de uma amiga ou de um amigo que possam vir a gostar desse tipo de conteúdo. Eu mando e quase sempre recebo um bom retorno. “Uau, eu não conhecia isso, é muito legal!”