O ano de 2024 marca os 60 anos do golpe da ditadura militar (1964-1985) ocorrido em 1º de abril de 1964, que implementou um regime de censura prévia às obras musicais e resultou em um período cruel para a sociedade brasileira de maneira geral, e de triste lembrança para o segmento artístico.
Nesta entrevista, o compositor Fernando Pellon fala a respeito do impacto que a ditadura militar teve na sua vida privada e afetou duramente o seu trabalho musical. “Não guardo boas recordações do período”, afirmou Fernando Pellon, ” (foi) uma total asfixia”.
Pergunta: Qual foi o primeiro impacto do governo da ditadura militar na sua vida?
Fernando Pellon: Meu pai era piloto da FAB com atuação no Correio Aéreo. Por ser fiel à Constituição, se opôs ao golpe de Estado e foi cassado, perdendo sua patente e ficando sem profissão com dois filhos pequenos para criar. Desse modo, senti o impacto negativo da ditadura desde a infância. Como estudante secundarista e universitário, sempre fui tratado pelas autoridades como um inimigo do Estado (assim como toda minha geração). Não guardo boas recordações do período.
Pergunta: O seu nome está na lista dos compositores que tiveram músicas censuradas, como sua composição “Com todas as letras” que integrava o repertório do disco “Cadáver pega fogo durante velório”, lançado em 1984. Como você lidou com o veto dos censores?
Fernando: A restrição da Censura Federal à música “Com Todas as Letras” atrapalhou bastante a divulgação do disco. Minha escolha, seguindo o exemplo de meu pai, foi tentar a liberação do disco buscando os meios legais disponíveis, com um recurso ao Conselho Federal de Censura, que teve Ricardo Cravo Albim como relator. Felizmente, tal abordagem deu certo depois de nove meses de trâmites burocráticos.
Pergunta: E como você se sentiu quando soube que a sua música tinha sido censurada?
Fernando: A censura sempre impôs dificuldades aos artistas, com o controle mesmo de repertórios de apresentações em barzinhos. Era uma situação kafkaniana.
Pergunta: A partir do seu próprio exemplo de autor, com obra vetada pela censura, qual foi a dimensão da atuação da censura prévia para a produção cultural do Brasil?
Fernando: Essa situação kafkaniana colocava um entrave às produções mais inovadoras, com caráter experimental. Uma total asfixia.
Pergunta: Qual foi o momento mais difícil daquele período para os compositores, principalmente para um artista independente como você?
Fernando: As coisas ficaram particularmente mais difíceis após a instauração do AI-5. A partir dele, a censura ficou quase intransponível.
Pergunta: Como você conseguiu driblar o autoritarismo e continuar fazendo música com letras bem ao seu estilo de abordar a morte e o suicídio que os censores não aprovavam?
Fernando: Eu decidi enfrentar a censura com as regras que ela mesmo impôs, ou seja, com o recurso ao Conselho Federal de Censura.
Pergunta: No artigo “Canção e morte em tempos de abertura política autoritária: os fúnebres sambas de Fernando Pellon”, o professor da UnB Jefferson William Gohl afirmou que sua canção “Com todas as letras”, cujo tema suicídio foi alvo do poder censório, “permite entrever um modo de tratar os temas da morte e ao mesmo tempo compreender as dinâmicas da repressão no Brasil dos anos 80”. Você concorda com a opinião dele?
Fernando: A música “Com todas as letras” narra uma experiência de liberação total. Para alcançá-la, o eu lírico precisou “ingerir uma dose letal de veneno”. A partir daquele momento, tudo estava consumado. A agonia do suicida foi então uma fiel expressão da liberdade: “Uma nau sem amarras, que os ventos da sorte conduzem ao porto, à morte”.
Pergunta: No mesmo artigo, Jefferson Gohl disse, também, que nas suas composições a morte desempenha um papel fundamental em sua elaboração semântica e temática e identifica nelas “uma flagrante intenção de entrar em choque com os valores repressivos vigentes, por meio dos temas escatológicos”. É isso mesmo?
Fernando: Nesse caso, a morte representava uma interrupção da capacidade de controle pelos valores repressivos vigentes. Um fato consumado, uma realidade maior que se impunha poeticamente sobre o esquema geral que asfixiava nossas vidas.
Pergunta: Tem valido à pena ser um autor musical, cuja obra tem como marca ir na direção oposta do tradicional?
Fernando: Vale à pena, sim. Como dizia Torquato Neto: “Um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo”.