Gravado em 1983, o disco “Cadáver pega fogo durante o velório” não pode ser lançado imediatamente, à época, devido à censura da música “Com todas as letras” (Fernando Pellon), que recebeu um parecer contrário à sua liberação de agentes da ditadura militar (1964-1985).
O disco levou cerca de nove meses para ser liberado, e isso se deve ao parecer do então conselheiro do Conselho Superior de Censura Ricardo Cravo Albin, pequisador e musicólogo, que é considerado um dos maiores pesquisadores da Música Popular Brasileira.
Cravo Albin fundou e dirigiu o Museu da Imagem e do Som (MIS) entre 1965 e 1971. Historiador de MPB, produtor musical, produtor de rádio e televisão, crítico e comentarista, Albin foi ainda diretor geral da Embrafilme e presidente do Instituto Nacional de Cinema (INC). É também autor, desde 1973, de aproximadamente 2.500 programas radiofônicos para a Rádio MEC.
Ele criou o Instituto Cultural Cravo Albin e lançou o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, disponível em meio digital, com cerca de doze mil verbetes. Nesta entrevista, Ricardo Cravo Albin falou para o site sobre a censura no período ditatorial militar.
Pergunta – Qual foi a relevância do surgimento do Conselho Superior de Censura no governo da ditadura militar (1964 -1985)?
Ricardo Cravo Albin – O que houve com o desenvolvimento do Conselho Superior de Censura foi a abertura para pulverização da censura, que veio logo depois com o tratamento que nós, que lideramos esse movimento, demos a esse processo defendendo a sociedade.
Pergunta – Fernando Pellon teve a música “Com todas as letras”, do disco “Cadáver pega fogo durante o velório”, censurada. Foi uma das vítimas desse período sombrio que o país enfrentava de embate entre a censura da ditadura militar e a liberdade de expressão.
Ricardo- Esse embate gerou como conclusão final o capítulo da Constituição de 1988 que foi trabalhado com o Dr. Ulysses Guimarães (ex-deputado que presidiu a Constituinte) e o Bernardo Cabral (ex-político), para acabar com a censura. A situação foi mudando a partir desses movimentos do Conselho Superior de Censura, liberando e provando, por A mais B, que era um absurdo censurar aquelas obras, como a música “Com todas as letras”.
Pergunta – Qual foi o impacto de ações como essa para as obras artísticas de maneira geral que caíam na malha da censura?
Ricardo – O que resultou desse grande benefício foi provar a inconsistência da censura das obras, a partir de pareceres técnicos dentro de um tribunal que se chamou de Conselho Superior de Censura. Logo depois que acabou o governo da ditadura militar, o nome censura foi substituído e o conselho passou a se chamar Conselho de Liberdade de Expressão. Isso deu razão à definição de origem (do Conselho).
Pergunta – Como foi a sua experiência como membro do Conselho Superior de Censura?
Ricardo – Foi a experiência mais reveladora que eu tive na vida, porque a gente lia nos jornais detalhes apenas, sínteses de como um monte de coisas de música, cinema, teatro e livros era proibido. Mas não se sabia dos vetos (dos censores) na íntegra. Quando aqueles pareceres chegaram à minha mão eu fiquei horrorizado. Vi que era uma inconsequência, uma burrice que não tinha o menor sentido.
Pergunta – Esse sentimento era generalizado entre os membros do conselho?
Ricardo – E aí começou essa luta de esclarecimento, não apenas da minha parte, mas também de outros conselheiros como o Pompeu de Souza, que na época representava a Associação Brasileira de Imprensa (ABI); da Suzana Morais que era representante dos cineastas. Havia também um integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL). Enfim, tudo isso fez com que as cabeças se abrissem em relação ao absurdo que era a falta de preparo daqueles censores, que eram antigos agentes da repressão (política).
Pergunta – E a sua opinião sobre o disco “Cadáver pega fogo durante o velório”?
Ricardo – Eu acho um trabalho extremamente interessante, que chamou a atenção por causa de uma música que foi censurada. E no meu parecer eu digo exatamente o absurdo que era isso. Eu, inclusive, escrevi o livro “Driblando a censura”, que virou uma referência em todas as instituições de ensino de jornalismo, que trata sobre a censura, toda essa proibição, essa coisa de sociedade que se autointitula defensora da moral e bons costumes, inclusive de costumes políticos. A censura também apreendia aquilo, que, à época, se chamava de subversão. Cadê o (direito) ao livre pensamento?