Já é noite quando Fernando Pellon resolve abrir o pacote que lhe foi endereçado e acaba de chegar. Dentro do envelope, uma grata surpresa: um exemplar do livro “A febre do infinito”, do escritor alagoano Mattüs, cuja epígrafe é um trecho da composição “Com todas as letras”, lançada originalmente no disco “Cadáver pega fogo durante o velório”, em 1984.
A música, cuja letra tinha sido censurada na ditadura militar (1964-1985), ganhou novos arranjos e foi regravada, sem cortes, como “Moribundas vontades”, faixa título disco que o compositor lançou em outubro de 2016. O trecho que aparece no livro de Mattüs é o seguinte: “A agonia de um suicida / É a mais fiel expressão da liberdade / Uma nau sem amarras / Que os ventos da sorte / Conduzem ao porto, à morte.”
Para quem conhece as composições de Fernando Pellon a escolha de uma letra sua em um livro de Mattüs não parece aleatória. Isso porque o universo no qual a obra é ambientada fala de sexo, drogas, suicídio em massa, violência, críticas sociais, entre outros temas de dramas cotidianos, que também são recorrentemente muito bem explorados pelo autor de “Cadáver pega fogo durante o velório”.
— “Cadáver pega fogo durante o velório” é uma obra catártica, sobretudo a música “Com todas as letras”. Esses foram justamente os versos utilizados por Mattüs como epígrafe do seu livro. Na poética do desconforto, creio que conseguimos alcançar aqueles que não suportam suas próprias angústias, disse Fernando Pellon.
Na dedicatória do livro, Mattüs revela sua admiração pelo compositor: “Muito obrigado pela autorização de uso da letra como epígrafe, seu trabalho foi bastante influente na construção deste livro. Obrigado por existir!”
O escritor contou como conheceu Fernando Pellon:
— Há 15 anos venho escrevendo contos dentro do universo do horror e ficção. Ao publicar meus romances, vi a oportunidade de inserir o tema do suicídio como ambientação para um enredo. Acho que o disco do Fernando Pellon “Cadáver Pega Fogo Durante o Velório” é uma das joias da música popular brasileira, conheci seu trabalho ao acaso, por pura curiosidade pelo título, e me vi diante de um samba fúnebre executado com uma maestria capaz de levar o ouvinte ao enterro mais próximo e até sentir um luto de baixo pesar acompanhado pelo gosto de café frio com bolacha água e sal. A canção “Com todas as letras” (depois transformada em “Moribundas vontades”) é a minha favorita, e o trecho utilizado no livro remete perfeitamente a ideia de “A febre do infinito”.
Natural de Palmeira dos Índios, Mattüs atualmente reside em Maceió (AL). Seu livro de estreia foi “O beco das almas famintas” (2016). Em “A febre do infinito” o personagem principal é Pedro, um homem que perde a namorada num ritual de suicídio em massa. A publicação foi lançada pela Sirva-se Edições Alternativas, em parceria com a Livrinho de Papel Finíssimo Editora, de Recife. A foto que ilustra essa notícia é do fotógrafo Rico Silva.