A história da música popular brasileira está repleta de grandes compositores que nunca tocaram nenhum tipo de instrumento, mas são autores de canções que ocupam lugar de destaque no gosto do público e alcançaram reconhecimento junto à crítica especializada. Adoniram Barbosa foi um deles.
Autor de muitos sambas que ficaram popularmente conhecidos, como “Saudosa Maloca”, “Trem das onze” e “Samba do Arnesto”, ele apresentava as melodias para músicos profissionais que cuidavam de escrever os arranjos e as harmonias.
Outros exemplos também conhecidos são Paulo Vanzolini, autor de “Volta por cima”, que dividia a carreira de compositor com a de professor da USP; e Wilson Batista, autor de mais de 500 composições, entre as quais o samba “Conversa fiada” que foi lançado no período em que protagonizou uma histórica polêmica com Noel Rosa.
Nessa galeria de compositores figura, também, o nome de Fernando Pellon, cuja carreira de compositor teve início em 1974, aos 18 anos de idade, e desde então, após três discos lançados, vem alcançando resultados melódicos inusitados, mesmo sem ter qualquer intimidade com instrumentos musicais.
No seu último CD “Moribundas vontades” (lançado em outubro de 2016), muito bem avaliado pelo crítico musical Tarik de Souza, Fernando Pellon foi mais ousado do que de costume e musicou um poema de Augusto dos Anjos, um de seus poetas prediletos, que foi gravado com o título “Mantra do samba”.
Dom especial
Essa rara habilidade para compor, sem nunca ter tocado nenhum instrumento musical, é um dom especial que ilumina Fernando Pellon no momento em que cria as melodias das suas composições.
Disse ele que quando era criança, morava no bairro do Grajaú (Zona Norte do Rio) e ouvia ao longe, “nas madrugadas de insônia infantil”, o som de bateria de escola de samba que se propagava desde o Engenho Novo (Zona Norte). Mais tarde, como vizinho de quintal de um centro espírita, foi se familiarizando com o som de atabaques.
O compositor recorda que a esse coquetel cultural se somaram os discos de seus pais que ele ouvia, desde as 78 rotações, com canções interpretadas por Luiz Gonzaga, Silvio Caldas, Elizeth Cardoso, Helena de Lima, Ciro Monteiro, Ataulfo Alves, Martinho da Vila e Paulinho da Viola, entre outros. Ele lembra que outra coisa que também o influenciou na sua maneira de compor foram as concorridas serestas realizadas no quintal da sua casa, nas quais Sinval Silva era presença constante:
— São essas sonoridades que carrego comigo, e que recombino como se fossem tijolos de uma singular construção poética, numa deglutição antropofágica oswaldianamente inspirada nos procedimentos da Tropicália, declarou.
Melodistas formidáveis
Jayme Vignoli, músico e arranjador, que cuida dos discos de Fernando Pellon, comenta que na música popular brasileira existem muitos casos de artistas que, mesmo sem ter frequentado a “academia formal” de música, têm brilhante atuação.
O músico ressalta que no Rio de Janeiro, principalmente no segmento do samba, destacam-se alguns melodistas que ele julga formidáveis, como Candeia, Dona Ivone Lara, Elton Medeiros e Wilson Moreira. Segundo ele, dentre esses quatro compositores Wilson Moreira é o único que realmente não tivera experiência com nenhum instrumento musical.
— Certa vez, munido de certa cisma, perguntei a Wilson de onde ele achava que vinha tanta inspiração melódica e sua resposta foi muito simples: “Eu sempre ouvi muito rádio…” Essa simples observação diz muito, principalmente numa época em que as rádios tocavam música boa, o que hoje não acontece.
Vignoli afirma que não tem nenhum receio em dizer que o exemplo de Fernando Pellon em muito o aproxima desses quatro outros autores que ele considera melodistas formidáveis:
— Fernando certamente cursou essa escola a partir das inúmeras referências que tem dentro de vastíssimo repertório que o coloca mais que à vontade para conversar sobre bolero, rock progressivo, Mutantes, Noel Rosa e a era de ouro do rádio. Ora, um camarada que sempre foi ouvinte tão atento, interessado e curioso como as grandes personalidades supracitadas, não poderia deixar de dar no que deu: melodista também muito inspirado, cujos temas musicais trazem sempre densidade aliada a uma familiar simplicidade. E ser simples por si só não é tarefa nada fácil. Conseguir aliar essa descomplicação a algo consistente, sinceramente, penso que é para poucos. Isso faz de Fernando Pellon um compositor gigante, com quem há muito que se aprender.