Desgraças e maledicências decalcadas de manchetes de jornais que exploram as mazelas dos desfavorecidos de forma sensacionalista, a dor e o berro impressos filtrados por um viés mordaz são a senha explícita a aproximar o samba “Jornal da morte”,de Miguel Gustavo, eternizado na gravação de 1961 de Roberto Silva, à obra musical do geólogo mineiramente carioca Fernando Pellon, em particular à sua estreia no álbum independente Cadáver pega fogo durante o velório (Vento de Raio, 1984).
Enquanto o primeiro – sucesso com a ufanista “Pra frente Brasil” – aborda as publicações espremeu sai sangue e expõe o consumo dessas notícias, o segundo expressa em seus versos, sempre em primeira pessoa,conflitos sui generis. Um vê as coisas de fora e enfia, metaforicamente, o dedo na ferida, só não se sabe se para contundir os receptores, atingindo os sinistros impulsos da alma popular, ou confrontar os veículos emissores. O outro disseca as reações desesperadas desde o epicentro da exacerbação do drama dos desafortunados.A nua violência da função emotiva – levada ao paroxismo em um período de recorrentes investidas contra a pessoa humana, de banalização até da morte –, no disco de Pellon, atua conscientemente, apresentando dados novos ao gênero fundador da canção brasileira.
Totalizando nove sambas e choros de corte clássico,gestados entre a fase mais doutrinária da ditadura civil-militar de 1964 e a (eterna) promessa de (re)democratização, o LP Cadáver… – quase um ano retido na censura federal antes de ser lançado, poucas cópias, mal distribuído, que chegou ao CD somente nos 2000 –, noentendimento doautor, permanece “clandestino” 35 anos depois de sua gravação.No entanto,importa mencionar seu papelno fortalecimentodo lastro de resistência que o sambadesempenhou desde seus primórdios. Menos pelo caráter panfletário do que pelaverossimilhança com os socialmente banidos e os marginais por opção.
Vingança, chantagem, suicídio, atropelamento, relações abusivas, doenças e enfermos, a voz dostraídos e seusdilemas:o repertóriotesta o limite da repugnância e o recalque de alguns – os de sempre? –,atingindo-os em seus medos e pudorespor uma espécie de jogo de espelhos cujos reflexosmórbidos, paradoxalmente, afirmam a vida e a liberdade.
Inspirado na poesia expressionista e de horror do paraibano Augusto dos Anjos,em Noel Rosa, nas reflexões radicais de Torquato Neto, em Cartola e na morbeza romântica de JardsMacalé, Wally Salomão e, porque não, Nelson Cavaquinho, o cancioneiro de Pellon – agouro pestilento de anomalias, patologias e fragilidade – soa como denúncia da propensão humana ao grotesco e à barbárie. Sua justificativa poderia ser: como os desvalidos e outsiders não desfrutam das mesmas oportunidades e do respeito dos vencedores, não se pode negar a eles a indignação, o desejo irado de mudança no tabuleiro da ampla rejeição – a menor movimentação constitutiva de alguma dignidade significa muito para quem não tem nada.
O título do álbum reproduz manchete do jornal carioca Última Hora, de janeiro de 1982, referindo-se ao velório de Jaime Gonçalves, que, acompanhado por um único amigo, após este se retirar, teve seu corpo carbonizado no contato do véu que o cobria com uma vela derrubada pelo vento.
Na base instrumental, Raphael Rabello (violão de sete), Helvius Vilela (piano), Marcelo Bernardes (sopros), Oscar Bolão (percussão) e João de Aquino (violão), ainda responsável pelos arranjos, à exceção de “Cicatrizes”, de Paulinho Lêmos, que cantou essa e mais duas músicas. As demais, cantam o próprio Fernando Pellon, Nadinho da Ilha, Cristina Buarque e Synval Silva.
Em todo o projeto gráfico destacam-senotícias do mesmo jornal(que fariam pasmar o “taradão” Nelson Rodrigues), em franco diálogo com as letras. Na capa,as fotos dos cinco intérpretes estão dispostas como se preenchessem cartaz de militantes “procurados” peladitadura, além de um contundente texto escrito porTárik de Souza, que não doura a pílula em busca de efeitos milagrosos: “Fernando Pellon vai chocar essa hipocrisia generalizada vendida com rótulo de bom gosto e status. ‘Nunca gostei de eufemismo’, vai logo cantando ele.”
E sea intençãoé escancarar o que a “pureza” ignara da classe média e das elites do país quer esconder –sua vocação autoritária –, o cadáver redivivo, como um walkingdead nas quebradas do mundaréu, rebrilha sua presença ausente e combustão voluntariosa contra a “burocracia do showbizz e do oficialismo político do bom humor [vendido] a preço de hiena”, fuzilaTárik também na capa.
Quem se habilita a conferir a velha bossa do samba – (ir)reverentementeinconformada – do além-moribundo, em registro especial e único?
Fabio Giorgio
Escritor, autor de Na BOCA do BODE – Entidades Musicais em Trânsito;
e criador audiovisual, dirigiu Beleléu Cá Entre Nós – Itamar Assumpção antes do Nego Dito.
Editou o zine Toxina F.C. e corroteirizou e coapresentou o programa Risco no disco, na USP FM.
Nasceu e vive em São Paulo.