Em cinema, normalmente a trilha sonora de um filme surge depois de a obra ter sido roteirizada e montada, e o som entra para compor, com os diálogos, a narrativa dos personagens no contexto da história.
Só que no documentário “É Miquelina, minha mulher”, de Fátima Lannes, aconteceu uma coisa inusitada: o movimento foi ao contrário, as composições de Fernando Pellon é que inspiraram o roteiro.
— Havia uma música chamada ‘Flores de plástico ao amanhecer’, do primeiro disco dele ‘Cadáver pega fogo durante o velório’ (1984), que me chamava muita atenção pela história hilária da letra. — diz Fátima Lannes ao recordar a letra da composição que lhe inspirou o roteiro do filme — Argumento pronto para se pensar em um filme. Daí em diante, foi sentar e trabalhar arduamente.
Fátima Lannes recorda que se viu diante de um desafio, porque considera Fernando Pellon “um cara muito especial” que a obrigava pensar em algo à altura do talento do compositor:
— Então veio a ideia de fazer algo diferente: reunir o repertório, escolher as músicas que pudessem alinhavar, ajudar a montar o roteiro e, a partir desse material valioso, fazer um filme narrado pela trilha sonora, coisa que só o Pellon provoca na gente, afirmou.
Admiradora de Fernando Pellon desde os anos 70, quando os dois integravam o Coletivo de Compositores Malta D’Areia, Fátima já disse que as músicas do compositor agradam, porque reúnem “musicalidade associada a letras raras e incomuns”.
— Quando Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, chamou Nelson Rodrigues para escrever “A vida como ela é”, Nelson pensou no seguinte: “O fato de polícia, seja qual for, representa o grande manancial poético de cada dia. Seja homicídio, cabeça quebrada, atropelamento, adultério, agressão, facada, tiro — não importa… A crônica policial tem suas raízes nas grandes paixões humanas, nos problemas eternos do homem… Tanto quanto possível, o nível lírico e dramático de cada acontecimento”. Esse era o pensamento do grande cronista.
Fátima diz que assim como o Nelson Rodrigues elevou o fato policial a uma categoria poética e dramática retratando com um toque ficcional histórias da “vida real”, Fernando Pellon, a partir dos mesmos temas, também dá um novo tratamento às suas letras:
— Ouvindo, observando, partindo da sua poética, do seu lírico, para as situações inusitadas da vida, sem nenhum pudor, sem transformar o desagradável em agradável (eufemismo), maestro em ser fiel às palavras que lhe permitem o deleite no compor, o que nos surpreende, e nos toca, nos faz rir e chorar ao mesmo tempo.
Uma amizade de mais de 30 anos sempre guarda uma lembrança marcante. Fátima recorda uma passagem com o amigo, nos anos 80.
— Quando estávamos em Juiz de Fora, Minas Gerais, na década de 80, o Pellon foi fazer um show em um restaurante na hora do almoço e entrou de cego, de bengala e óculos escuros cantando “Carne no jantar”. A reação foi péssima, pela música e cegueira e algumas pessoas foram embora completamente desapontadas. No meio da música, ele jogou os óculos e bengala fora e a plateia, completamente indignada, não sabia se ria ou se chorava. Este é o Pellon!
Abaixo, segue a letra de “Flores de plástico ao amanhecer”:
No dia de finados
Constatará o mundo
Minha memória reverenciada
Bateste em retirada
A mim não deves mais nada
Com tua consciência estás desobrigada
Só sei que quando contemplei flores de plástico
Ao amanhecer ornando a minha tampa
Quase levantei, indignado, a tampa do meu pesado ataúde
Quis fazê-lo, mas não pude por estar debilitado
Um cadáver, um coitado em estado precário de saúde
O filme “É Miquelina, minha mulher”, com músicas do Fernando Pellon e com apenas uma única fala, ganhou a 42ª Mostra Internacional de Cinema como o melhor curta-metragem em 1987.