Quando pensou em gravar o primeiro disco da sua carreira o compositor Fernando Pellon não imaginava que o talento que tem para falar da morte nas suas canções, como no álbum “Cadáver pega fogo durante o velório”, iria se eternizar como um espírito que vaga, prazerosamente, nas rodas de conversas mais inusitadas do país. Dos botequins “mais vagabundos”, como diria o amigo e compositor Aldir Blanc (1947-2020), até os lugares mais improváveis como os ambientes acadêmicos das universidades, o disco ainda hoje, 37 anos depois do seu lançamento (1984), é como uma alma que se recusa a morrer e um corpo que não quer ser enterrado. Ou seja, está mais vivo do que nunca nos debates sobre como a música popular brasileira, de um autor independente, de forma bem genuína, utiliza o lirismo e a sátira para cantar um tema tão melancólico como a morte.
A forma de compor de Fernando Pellon chamou tanto a atenção do historiador Jefferson Willian Gohl, que ele abordou esse tema no artigo “Canção e morte em tempo de abertura política autoritária: os sambas fúnebres de Fernando Pellon”, apresentado no IV Seminário Internacional História do Tempo Presente, ocorrido na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), no semestre passado. “Os sambas nostálgicos ou mesmo melancólicos como o de Nelson Cavaquinho eram o modelo para Fernando Pellon compor trágicos sambas em que os temas da morte e os tons sarcásticos produziam um particular senso de humor”, observa o historiador na abertura do artigo em que situa o contexto cultural da década de 1980, no Brasil, em plena ditadura militar (1964-1985).
Referindo-se ao período de destaque do samba no início dos anos 80, Jefferson Willian afirma que esse contexto se caracterizava por um ambiente cultural que “ressignificava os elementos presentes no conteúdo cancional de sambistas”, lembrando que era um momento em que pagode iniciava “sua carreira como novo fenômeno fonográfico” em um cenário que marcou a sua ascensão. “No entanto, um artista em particular olhava para o passado e retomava alguns elementos temáticos, timbrísticos e harmônicos, com uma proposta de elaboração de temas que se configuravam de modo a produzir estranhamento frente ao chamado samba de embalo”. Na opinião do historiador, esse artista é Fernando Pellon.
Jefferson se refere aos sambas que Fernando Pellon compôs para o disco “Cadáver pega fogo durante o velório”, e diz que podem ser enquadrados na categoria de “morbeza romântica”, que marca as obras de Jards Macalé e Wally Salomão. Ela atesta que as criações do compositor se assemelham ao vanguardismo de compositores da chamada Vanguarda Paulistana, como Arrigo Barnabé e Itamar Assunção.
Na sua opinião, a morte não foi o único elemento que orientou a produção do disco, que alcançou notoriedade devido à capacidade de Fernando Pellon como letrista amparado em “criações escatológicas”, que acabaram chamando a atenção de críticos como Roberto Mugiatti, na revista Manchete, que em 1984 escreveu: “… quis dar um soco na cara da classe média chafurdando em matéria & manchetes típicas de jornais populares… a ideia de Pellon é espelhar a violência no país. O problema a saber é se a classe média (a quem se dirige o álbum afinal), ao voltar para casa da rua violenta, vai querer botar o mesmo disco na vitrola”.
Além das letras dos sambas de Fernando Pellon o artigo do historiador Jefferson Willian é rico em detalhes, também, sobre os problemas que o compositor enfrentou com os agentes do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do regime do golpe militar de 1964. O caso mais marcante foi o trâmite para a liberação da música “Com todas as letras”, que os censores implicaram por causa da sua abordagem ao suicídio, concluindo que a letra poderia implicar na indução do ato. Esse episódio contou, inclusive, com a intervenção do psiquiatra Mario Santos Moreira que interveio a favor de Fernando Pellon e apresentou uma opinião médica que foi utilizada na defesa de liberação da música junto ao DCDP.
Para ver o artigo completo de Jefferson Willian e se inteirar da tese do historiador sobre a obra de Fernando Pellon clique aqui.