Ao falar do amigo e parceiro Fernando Pellon, o cantor e compositor Paulinho Lêmos se entusiasma e afirma que ele quebra diversos tabus ao mexer em tantos temas “complicados” em suas letras, como a morte, as doenças terminais, o amor, necrotério, bordéis, jazigos, cemitérios etc. Radicado na Europa há mais de 30 anos, Paulinho Lêmos concedeu esta entrevista para o site por e-mail, e conta como se deu a parceria com o compositor cujas melodias “são de uma beleza e de uma maturidade fora do normal”, para uma pessoa que não toca nenhum instrumento musical.
Quando e como você conheceu o Fernando Pellon?
Se não me falha a memória, acho que nos finais dos anos 70, início dos 80 que nos conhecemos. Eu morava em São Cristóvão, zona norte do Rio de Janeiro, onde conheci o Antônio Frazão (Tunico), o Renato Calaça, a Cassia Bonturi, a Fatinha Lannes e o Roberto Bozzetti, que já era amigo do Pellon, mas não nos conhecíamos ainda. Com esse grupo de amigos fazíamos encontros musicais para tocar, compor, ensaiar, estudar etc. Em um desses encontros, o Bozzetti trouxe o Pellon e nos apresentou esta incrível pessoa que imediatamente acabou fazendo parte do grupo que se chamava Malta D’areia. A minha parceria com o Pellon nasceu naquela época, naqueles encontros e permanece até os dias de hoje.
Gostaria que você definisse o Fernando Pellon compositor…
Definir alguém não é tarefa fácil, mas posso falar um pouco do meu parceiro Pellon. Digo que ele é, talvez, o único compositor da atualidade, pelo menos dos que eu conheça, que faz música dentro de uma atmosfera conflitante, pouco explorada, pouco divulgada e, pouco entendida também. No mínimo um punk diferente (risos). Como compositor ele quebra o conceito, o tabu ao mexer em tantos temas “complicados” como a morte, as doenças terminais, o amor, necrotério, bordéis, jazigos, cemitérios, isso falando dos seus textos, de suas letras. Agora, as músicas que ele compõe são de uma beleza e de uma maturidade fora do normal para uma pessoa que não toca nenhum instrumento musical. Eu entrava justamente nessa parte, digamos, de tentar harmonizar as suas ideias, as suas melodias, ajudando a interpretar no violão o que ele pretendia. Outras vezes ele me entregava a letra e eu compunha a melodia. Enfim, refiro-me a essa genialidade levando em consideração a crença de que o espírito psicografa e, no caso do Pellon, “musicografa” também. Ele é como “para-raios” diria eu.
A parceria entre vocês foi uma decisão imediata?
Não diria uma decisão imediata, ou nem se quer uma decisão. Foi fluindo! Isso porque, conforme referi acima, o nosso grupo Malta D’areia se reunia semanalmente para tocar, compor, ensaiar, estudar e com isso surgiam parcerias de todos entre todos os participantes do grupo… e muitas! Era o processo natural de convivência que dava frutos. Uma criação constante. A nossa parceria começou nesses vários encontros durante o “longo e saudável” tempo que o saudoso grupo existiu. Penso que nossa primeira música juntos foi “Tal como Nazareth”, gravada no disco do “Cadáver pega fogo durante o velório” (1983).
Quantas canções vocês fizeram juntos?
Se não estou em erro, acho que são 12 músicas no total, visto que a frequência diminuiu, ou aumentou (risos) com a minha mudança pra Europa em 1988. Pouco a pouco vamos alimentando a parceria e já está nascendo coisas novas. Agora estamos fazendo de outra maneira, ou seja, eu mando a música pronta e ele põe a letra e tá ficando bacana também.
De qual música dessa parceria você mais gosta?
Da nossa parceria, não tem uma música que mais gosto. Tenho sim a que tem mais significado pra mim – “Tal como Nazareth” – por ter sido registrada no fantástico LP “Cadáver pega fogo durante o velório” nosso primeiro registro discográfico há 36 anos. Ufa!
Até hoje é o mais badalado disco da dupla Fernando Pellon e Paulinho Lêmos. Fale um pouco desse trabalho.
Para além de assinar todas as faixas e ser o ponto central do disco, do projeto em si, Pellon teve a oportunidade de discutir, amadurecer e desenvolver as ideias junto com os vários parceiros do grupo Malta D’areia, alguns aqui já citados e outros que circulavam naquele ambiente de comunhão. Isso foi fundamental! O disco não é da nossa dupla e sim do Fernando Pellon. Não somos uma dupla (risos), somos parceiros. A nossa única parceria no disco é “Tal como Nazareth”.
Além dessa composição, qual foi a sua participação no disco?
Eu participo do LP apenas cantando e tocando em algumas músicas, além de ter ajudado o João de Aquino (violonista e compositor) nos arranjos, pois nessa altura eu não tinha ferramentas e maturidade suficiente para assumir a totalidade dos arranjos e tal. Por outro lado eu demorei a digerir tal temática, aqueles textos que metiam “medo”, aquela morbidez, aquela música diferente de tudo o que eu conhecia até o momento, mas ao mesmo tempo eu adorava.
Como é que você superou isso?
Com o tempo e com a convivência com a “Malta” foi ficando mais fácil e prazeroso cantar, interpretar, mas levou tempo! Imaginem: “Tarde da noite, me ligaram do necrotério…”; ou “Ouvi dizer que o amor é como certos casos de lepra…”; ou ainda “Saio do balcão cuspindo uma gosma viscosa…”, e por aí vai… Não era (é) comum para mim e pra ninguém. Só pro Pellon mesmo (risos).
Você lembra de algum fato curioso em relação aos versos do Pellon?
Deixa-me contar uma história: o disco tinha acabado de sair e estávamos todos superfelizes e empolgados. Eu, o Tunico Frazão e acho que mais alguém (talvez o Renato Calaça), fomos convidados por uns amigos para ir a uma festa. Levamos o novo LP, todos orgulhosos para mostrar e tal. Mal começou a tocar a primeira faixa o nosso amigo pediu para parar, para tirar imediatamente e a festa se acabou ali mesmo, naquele momento, ou nem chegou a começar. A primeira música era “Porta afora” e a primeira frase da música dizia “Quando eu soube que estava canceroso…” Puts, fodeu! Alguém nos disse que o pai do nosso amigo tinha morrido de câncer naquela semana e que a mãe pediu para tirar o disco da vitrola, já! (risos).
Mas depois de algum tempo as pessoas ainda demoravam a se acostumar ou entendiam melhor a mensagem?
Enfim… o impacto era imediato, ninguém ficava de fora e a estranheza se instalava criando diversas interpretações dos ouvintes. Uns riam, outros ficavam sérios. Alguns não reagiam, ou não entendiam nada… Esse é Fernando Pellon!
Nesse momento, o Pellon está preparando o seu quarto álbum “Medula e osso”, que com certeza tem músicas suas em parceria com ele. São composições inéditas?
Acho que sim, acho que a nossa parceria segue presente nesse novo álbum que está sendo preparado. Não sei bem como anda isso, o repertório do novo CD, etc. Posso adiantar que temos duas músicas novas e ainda inéditas que gosto muito: “Tempo verbal” e “Colônia penal”, que é uma valsa que fiz em São Paulo quando fui convidado pelo Pellon pra participar no concerto celebrando os 35 anos do “Cadáver…” no ano passado. Mandei a música para ele pelo WhatsApp e recentemente recebi a letra que está fantástica.
Quais são e as suas expectativas sobre esse novo disco?
As minhas expectativas são as melhores possíveis para esse novo trabalho do Pellon. Não conheço todas as músicas que foram incluídas, mas tenho a certeza de que o Pellon nos brindará com mais uma maravilhosa coletânea musical. Ah, sim que também gostaria de cantar alguma música no novo disco… peçam para ele que talvez possa dar certo (risos).
Músicas em parcerias de Paulinho Lêmos com Fernando Pellon e respectivos álbuns:
“Tal como Nazareth” (“Cadáver pega fogo durante o velório” – 1983)
“Rigidez cadavérica” (“Aço frio de um punhal” – 2010)
“Crime hediondo” (“Aço frio de um punhal” – 2010)
“Vaso ruim” (“Aço frio de um punhal” – 2010)
“Sangue venoso” (“Moribundas vontades” – 2016)
“Ronda carioca” (“Moribundas vontades” – 2016)
“Elzira, a morta virgem” (“Moribundas vontades” – 2016)
“Via oral”
“Álibi vulgar”
“Vogais e consoantes”
“Os amigos e a família” (em processo de composição. Aguardem!)