Diante das recorrentes e sombrias agressões que o setor cultural no Brasil vem sofrendo atualmente, perguntamos ao compositor Fernando Pellon de que maneira o meio artístico poderá reagir, como já fez em um passado recente, a essa ameaça à inteligência nacional. “Convergência de ação na luta da civilização contra a barbárie, ocupando todos os espaços possíveis”, disse o compositor sobre a única forma que ele entende que a classe artística reagir aos desafios que se apresentam. No bate-papo a seguir, o leitor vai saber um pouco mais sobre as opiniões de Fernando Pellon sobre a resistência da cultura.
Pergunta – O editor do caderno de cultura da Folha de S.Paulo Marcos Augusto Gonçalves disse que o país vive um estágio de “regressão mental, política e cultural de proporções bíblicas”. O que você acha?
Fernando Pellon – Na minha opinião, a “mutabilidade” do passado parece ser uma parte importante desse processo brutal de regressão civilizatória que estamos vivendo. Estabelecendo um paralelo com o mundo tirânico descrito por George Orwell, no magistral livro “1984”, vale a pena prestar atenção no que diz um de seus personagens: “Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo verdadeiro conhecimento terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron… só existirão em versões Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram”.
Pergunta – Quais são os maiores desafios que a cultura enfrenta nesse momento?
Fernando Pellon – De acordo com o raciocínio acima, se o passado se encontra em registros, quem domina o presente, domina o passado. Daí segue que quem domina o passado pode tentar impor arbitrariamente uma vertente de futuro. Não é à toa que mais de 100 quadros com cartazes de filmes brasileiros foram retirados dos espaços comuns dos dois edifícios da Ancine, no Rio de Janeiro. Além disso, uma aba fixa que mostrava os cartazes e a ficha técnica dos filmes brasileiros foi removida do site dessa agência. O desafio é lutar pela manutenção de nossas conquistas culturais e estéticas, de modo que a cultura no Brasil evolua a partir dessa perspectiva.
Pergunta – No livro “O corpo encantado das ruas”, lançado recentemente, o historiador Luiz Antonio Simas reproduz um comentário do cronista João do Rio, no qual ele diz que “as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião”. É desse universo que você cultiva as histórias e personagens para as composições?
Fernando Pellon – Simas trabalhou com o conceito de epistemicídio, o qual, acredito, refere-se à ação das forças reacionárias que buscam orwellianamente apagar/filtrar da memória popular nossas formas cotidianas de dar sentido à vida e traçar rumos, da capoeira ao funk, dos terreiros aos blocos carnavalescos. Se as ruas pensam, é nas esquinas que se dará a resistência (no churrasco de gato, na mesa do bar, na porrinha, nos garis, nas peladas, nos mendigos e nos camelôs). A inspiração veio de Torquato Neto: “Organizar arquivos de imagem brasileira desses tempos. Planos gerais, retratos da paisagem geral, arquivos vivos, as fachadas, os beijos, as punhaladas”.
Pergunta – Você se considera um compositor cuja obra tem a marca da insurgência contra as exclusões? Por quê?
Fernando Pellon – No livro de Orwell, a tarefa de um filólogo a serviço do governo era destruir palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias. Essa ficção tem um lado real, como nesse material publicado, no começo da década de 1980, na seção “Carta dos Leitores” do antigo Jornal do Brasil: “Palavra Condenada – As autoridades competentes da Saúde Pública há muito se esforçam para extinguir a palavra Lepra da linguagem diária, para que os portadores de Hanseníase (denominação correta da doença) não se afastem de seus tratamentos e de seus médicos e para que não sejam renegados pela família, já que os conhecimentos científicos atuais permitem a convivência desses pacientes na sociedade. É preciso eliminar o estigma e o primeiro passo é abolir a palavra. Dr. Orlando Janólio, RJ”. Pois meu interesse poético reside justamente na palavra estigmatizada: “Ouvi dizer que o amor é como em certos casos de lepra/Que nunca se curam a contento/Ouvi dizer que na presença do amor/ Assim como em certos casos de lepra/Qualquer esperança é perda de tempo” (“Vã esperança”, no Lp Cadáver Pega Fogo Durante o Velório).
Pergunta – Tanto no campo científico quanto no esotérico, especialistas debatem sobre o poder oculto da música. O quanto a arte musical pode ser reveladora de ideias sobre os verdadeiros anseios e sentimentos do povo até então não percebidos?
Fernando Pellon – A música popular fala sobre tudo que temos, tudo que somos e tudo que sonhamos. Esse conjunto tem a capacidade de inspirar ações para uma sociedade em movimento, na busca de sua autonomia, em oposição à perspectiva sombria do livro 1984: “Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre”.