A manchete do jornal Última Hora “Cadáver pega fogo durante o velório” foi o que inspirou o compositor Fernando Pellon no desenvolvimento da ideia da produção do seu primeiro disco, gravado em 1983, e que até o momento é a sua obra musical mais prestigiada.
A gravação ocorreu em um período em que o compositor estava ligado ao grupo Malta da Areia, coletivo formado por compositores, músicos e poetas que acabaram participando ativamente na produção de várias etapas do disco, que foi desenhado a partir de um processo coletivo.
Um dos integrantes do Malta da Areia era o letrista e professor de Literatura Roberto Bozzetti (foto), que é parceiro de Fernando Pellon em diversas canções. “Lembro que em minhas conversas intermináveis com ele eu meio que ficava tentando definir a espinha dorsal do repertório, que a meu ver, e os amigos concordavam, era o que tinha que entrar em campo, ou seja, o material a ser gravado deveria ser aquele mais contundente possível, as canções mais avessas a uma recepção por assim dizer ‘pacífica’, indiferente”, afirmou Bozzetti.
Fernando Pellon foi realmente ousado e as nove faixas do disco formam um repertório à primeira audição meio “perturbador”, pautado nas manchetes trágicas dos jornais de linha editorial policialesca, com páginas do tipo “se espremer sai sangue”, em que o compositor, a seu modo, se inspirou para falar de tragédias e das mazelas urbanas com as quais ele se depara pelo caminho.
Uma dessas canções é “Porta afora”, a primeira faixa do disco, cuja letra diz: Quando eu soube que estava canceroso / Ergui louvores ao criador / Pois me desprezaste / Me escorraçaste / destruindo nosso ninho de amor…
“Nesse sentido sempre foi muito claro que ‘Porta afora’ era uma espécie de suma, um epítome do todo, era ali que estava concentrada toda a potência de implicações éticas e estéticas do repertório todo. E foi precisamente a partir disso que nós trabalhamos, tanto que é ‘Porta afora’ a canção que abre o ‘Cadáver’”, explicou.
Barra pesada
“Cadáver pega fogo durante o velório” é um disco que, esteticamente, se aproxima da criação artística de compositores e músicos alternativos vanguardistas que revolucionaram a produção musical em São Paulo com a Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista. Ao mesmo tempo, trata-se de uma produção musical cujas canções são um espelho da verdade nua e crua sem nuanças ou leveza, como apontou Bozzetti.
“Os únicos momentos mais ‘leves’, digamos assim, do disco, estão nas músicas ‘Cicatrizes’ e ‘Prazer qualquer’ (você pode ouvi-las pelo Spotify ou no site https://fernandopellon.com.br/ ). Mas diversas outras canções que vieram a entrar depois em outros discos do Pellon já existiam na época desse disco (“Cadáver”), como a linda ‘Ciclo das águas’, que acabou ficando de fora do ‘Cadáver’ por ser muito ‘leve’”, contou.
Roberto Bozzetti lembrou que em matéria de barra pesada a música “Cinco sentidos” também não pôde ser liberada para o disco, vindo a ser gravada depois. A duas canções foram gravadas no repertório do álbum “Aço frio de um punhal”, que Fernando Pellon lançou em 2010.
Disco cult
Mesmo sendo um compositor desconhecido do mercado fonográfico e ainda pouco divulgado na mídia convencional, com o seu trabalho independente em “Cadáver pega fogo durante o velório” Fernando Pellon conseguiu que o disco se mantenha há 40 anos sendo citado no ambiente musical alternativo.
Com esse trabalho o compositor chamou a atenção de reputados críticos musicais como Tárik de Souza e Ricardo Schott (Jornal do Brasil, O Dia, e que também escreveu para revistas como Bizz, International Magazine, Billboard Brasil e Rolling Stone Brasil), criador do blog do Pop Fantasma.
Como Fernando Pellon é um artista avesso à autopromoção, e meio tímido no trato com a imprensa. Talvez, seja por isso que seus discos não sejam tão populares quanto mereciam pela qualidade das suas composições. Mas mesmo assim “Cadáver pega fogo durante o velório”, além de blogs e sites jornalísticos, tem sido citado também em artigos e trabalhos acadêmicos que analisam a produção musical alternativa no Brasil.
“Penso que o que chama a atenção de certos estudiosos ou de gente mais genuinamente interessada em cultura e estética é a singularidade do trabalho do Pellon. E a meu ver, não é a linguagem crua, direta (como às vezes eu leio) que interessa mais não, nem mesmo sua proximidade com certos aspectos de Augusto dos Anjos”, analisa Bozzetti.
Maestria invejável
Para o parceiro, no disco “Cadáver pega fogo durante o velório” Fernando Pellon dá mostras de sobra de que tem uma maestria invejável no manejo das letras. “Seu trabalho poeticamente é muito refinado, ao recuperar modelos antigos e questioná-los de dentro, como se os tivesse somente cultuando; musicalmente também, já que Pellon apesar de ser um compositor intuitivo, no sentido em que não toca nenhum instrumento, encontra saídas melódicas e harmônicas surpreendentes, no prolongamento de uma tradição ‘intuitiva’ que vem de Zé Kéti, Elton (Elton Medeiros), Wilson Moreira”, afirmou.
“Mas penso que o que assegura a solidez e a capacidade de continuar forte o seu trabalho é o que chamo em um ensaio longo sobre o ‘Cadáver’, que sairá em livro que estou organizando, é que o trabalho de Pellon aponta para a permanência do pesadelo do macho brasileiro”, disse o letrista.
Fernando Pellon diz que o investimento na promoção do seu trabalho musical visando ao reconhecimento público e ao sucesso vai acontecer naturalmente, e brinca: “Só quando eu morrer”.