(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)

Tarde da noite
Me ligaram do necrotério
Tratava-se de assunto sério
Conforme me asseverou
O funcionário de plantão na ocasião

– Meu coração palpitou
Violente emoção!

E assim chegava ao fim
Aquele grande mistério
Teu rosto, imagem de cera
A me fitar
Arrogante e sério

Eu que passei o mês inteiro
Sem saber do teu paradeiro
Te imaginando a me trair
Por prazer ou por dinheiro

(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)

Eu lhe chamo “meu bem”
E você não me atende
Eu lhe chamo “doçura”
E você se ressente
(é o que diz)
De um macho adequado
A seu lado
Um homem peludo e barbado
O tipo acabado
De vilão carismático

Eu tusso, franzino,
E me desaponto
Com sua indiferença
Ante minhas carícias
Me recolho, no leito,
A meu canto
Espero o sono
E então me consolo
Sonhando
Com um mar de delícias
Com um crime hediondo

(Fernando Pellon)

Eu que fui água do balde
Que você jogou fora
E que escoei pela ralo
Indo assim embora

Penetrando no vil submundo
De tantos dejetos humanos
Sarjeta onde agora padeço
Com meus desenganos

Mas a avida um dia, eu sei,
Me fará desaguar
No curso de um rio
Num lago
Ou mesmo no mar

E na presença do sol
Verei brilhar a esperança
Sendo erguido aos céus
Até nuvem branca

Quando findar a estiagem
Pretendo voltar
Fertilizando algum campo
Fazendo o amor brotar

E casso isso aconteça
Guardo um ardente desejo
Ter destino diferente
Das águas de despejo

(Fernando Pellon)

Troquei tudo por tão pouco
Para arder num beijo louco
Vendi minha própria alma
Não pensei na sociedade
Nos rumores da cidade
Cometi terrível falta

O passado é uma rocha
Que carrego em minhas costas
Sofro como um condenado
Água mole em pedra dura
Tanta dor só o tempo cura
Dissolvendo o meu pecado

(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)

Sempre tive algo de bom
Sempre houve um algo mal, pois sim
Algo bom para o bem ou para o mal
Pode o mal fazer o bem ou o mal em mim?

Sempre ouço o coração a martelar
Na cabeça, pois a vida pulsa em mim
Pode a vida me manter até rachar
Ou irei sobreviver, vaso ruim?

Sinto o tempo na areia a escorrer
Para baixo como a me soterrar
Pode o tempo com a areia me esconder
De quem vem no fim do tempo me pegar?

(Fernando Pellon)

Você se espanta comigo
Só porque comprei a prazo um abrigo
No Jardim da Saudade
Para a sua eternidade

Você não acha sentido
Nessas coisas que eu lhe digo
Mas isso não é verdade
Até que a saudade
É um sentimento bonito

Condução pra lá é farta
Tem café, água gelada
Escada rolante, som ambiente
Refrigeração permanente

A capela é bem moderna
Vitrais multicoloridos
Só porque a saudade
É um sentimento bonito

(Fernando Pellon)

Ajudei na viuvez
Amparei na orfandade
Deixei de levar vantagem
Só por questão de amizade

Reparei a injustiça
Perdoei a ingratidão
No conceito dessa gente
Eu tenho bom coração

Ofertei o ombro amigo
Ao companheiro humilhado
Acalmei com meu conselho
O juízo perturbado

Sempre apontei o certo
Quando havia algo errado
Na ideia dessa gente
Sou um home considerado

Mas com minha mulher
Não é bem assim
Há quem fale bem dela
Só por causa de mim

(Fernando Pellon)

Por teu amor cheirei o teu sovaco
Por teu amor funguei no teu cangote
Por teu amor não fiquei inibido
Em pôr à prova meus cinco sentidos
Por teu amor eu gastei muita ficha
De telefone e passei muito trote
Por teu amor ameacei de morte
Todos os meus rivais petenciais

Agora estou na rua da amargura
Fumando guimba de cigarro usado
Bebendo resto de cerveja quente
Comendo o que na travessa é deixado

E os versos que eu te dediquei, poeta,
Nos quais eu me entregava por inteiro
Eu reescrevo com as minhas fezes
Atrás da porta de qualquer banheiro

(Fernando Pellon)

Todo mendigo do mundo
Tem seu lugar reservado
No canto mais sujo da rua
Tem por único Deus
Uma vela acesa
Comida na lata de lixo
É uma grata surpresa

Qualquer mendigo do mundo
Sabe bem mais desta vida
Do que eu mesmo de mim
Pois enquanto ele é
Radicalmente nenhum
Sou qualquer um
Mais um, menos um
Sem querer entender como e por quê

É um rochedo, suporta o calor e o frio
Predestinado, seu caminho só
Pode levar ao fim
É o poeta, o faquir
É o santo guerreiro
O herói que luta por viver
Dentro de mim

Mas, mesmo assim…

(Tuke e Fernando Pellon)

Poetilicamente dedicado ao Escritório Central dos Alcoólatras do Brasil (ECA do B) e ao Bar Natal (Niterói, RJ)

 Saio do balcão cuspindo uma gosma viscosa
Tropeço na porta do banheiro
Mergulho num mar de urina
Vomito em minha cara feito um chafariz

E adormeço ali
No habitat ideal
Daqueles que como eu
Atingiram o último degrau da vida