Letras e partituras
(Roberto Bozzetti e Fernando Pellon)
Tudo nessa vida passa, dizem os tolos
e a vida escoa na mais atônita paz
o caso é que eu ando mal e porcamente
no gelo das ruas, solitário, demente
o meu sorriso é um doente nervoso
nenhum prazer eu mostro no brilho dos dentes
Quem sabe um pouco mais me adiante
quem sabe um gesto mau me adormeça
me faça deitar um pouco a cabeça
no colo quieto de gente
ai, eu sei
tudo isso vai me roendo sem remédio até o fim
mas, porém, contudo, todavia, entretanto
não falem mal dessa mulher perto de mim
Não sei mais onde vive o meu instinto
onde guardo o meu ódio mais puro e mais franco
só sei andar aos trancos e barrancos
ai, amor
rejeite de vez todos os meus atos falhos
respeite ao menos os meus caninos brancos
(Fernando Pellon)
Passar a vau
Pelos riachos
Passar a vau
Por essas águas
É nosso pranto
São nossas mágoas
Grandes torrentes
Caudais de lágrimas
O leito do rio é o asfalto,
Sem seixos, sem pedras no chão
A pesca sou eu que faço
Os anzóis são os dedos das mãos
Sou Iara, sou traiçoeira
E pretendo enfeitiçar
Coitado do forasteiro
Que em mim acreditar
Passar a vau
Pelos riachos
Passar a vau
Por essas águas
É nosso pranto
São nossas mágoas
Grandes torrentes
Caudais de lágrimas
Esperança no rio é bateia
Estou aqui prá garimpar
O fruto dessa batalha
É comer, vestir e morar
Quero ver com quantos quilates
A sorte vai me bafejar
E pobre do inocente
Que de mim se apiedar
(Fernando Pellon)
Ontem eu saí, fui passear
Pelas ruínas da cidade
Paisagem de tristeza
Pois só há saudade
Onde habitou beleza
Cada parede ao chão
É uma negativa
À memória do direito de estar viva.
Ontem eu saí, fui me encontrar
Pelos escombros do meu Rio
Pois tenho a alma morta
Feita em pedaços
Como o casario
E cada viaduto
É hidra de concreto
Capricho leviano do progresso.
São Cristóvão, bairro imperial
Cidade Nova, quanta tradição
A Glória e o Catete
São lembranças no meu coração
Consternado por tanta destruição
(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)
Tenho prazer em romper
Uma drágea entre os dentes
Com muito ódio
Com toda a força
Para sentir a substância
A me queimar a boca
Ou então tomar a seco uma aspirina
Curtir um gosto amargo na língua
E triturar o comprimido
Mastigando o remédio
Num frenesi incontido
Deixando a cura seguir seu caminho
Finalmente
Viscosa como um xarope
Em minha garganta doente
(Fernando Pellon e Jayme Vignoli)
Tem a letargia
Embutida nas entranhas
Flácida mistura
De carnes e gordura
Seu esqueleto é cartilagem pura
A lhe conferir inconsistência
Há um insuportável cheiro
Vadio de chiqueiros
De perambular pela imundície
Como se a ela servisse
Tal escravo
De inimistificáveis tendências
Conserva presa à terra
Sua sensibilidade
Conversas rasteiras
Com ervas daninhas
Imerso na imaterialidade
Responde com a transcendência
De um espírito de porco
(Roberto Bozzetti e Fernando Pellon)
Eu sou mais um fauno
sou mais um biscateiro
sou mais
um sujeito perverso
um caso muito complexo
um misto
de aderente político
e de poeta incorreto
tenho a obra inconclusa
feita em discurso indireto
mas quem me houve
é só mercador
Ansioso
tenho muita esperança
preguiçoso
na hora exata
precisa
espero que a manhã nasça
pra dar o golpe completo
e viver tranquilo
mas sobretudo
cheio de apertos
sou mais
um fauno um tanto inquieto
após a sesta dormito
um olho nas ninfas
e uma vela ao capeta
Sou é mais…
(Fernando Pellon e José Reinaldo Marques)
I need time
To feel sorry about myself
I need memories
To keep me alive
In the gloom
Of these rainy days
I need loneliness
To survive
Gradually I’ll start
To let go
What I feel inside
And begin to understand
Some of the things you say
Though I’m not much good
At staying quiet in yours arms
And still prefer
The mere company of nightmares
(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)
Pode me apunhalar
Pelas costas, se quiser
Perpetrar mais uma traição
Se lhe aprouver
Prometo
Vou-me descuidar
Da janela cair
Ou me intoxicar
Com quaisquer trinta dinheiros
Você arruma
Um álibi vulgar
Não lhe exijo sacrifícios
Só lhe rogo paciência
Luto e continência
Durante toda
A minha ausência
E com uma boa propina
Você
Que é esperta menina
Me dá um enterro de luxo
Às expensas da Previdência
(Roberto Bozzetti e Fernando Pellon)
Não cuido mais nem de mim
nem mesmo sei que dia é hoje
e o que me vai por dentro
não adivinho, não deduzo
talvez
seja falta de carinho ou de barulho
seja falta de vergonha ou de remorso
tudo que é torto, troncho, descabido, enorme
tudo que é tão triste
tão triste, amor
eu vou
sorrindo e não escovei os dentes
não cortei as unhas
nem aparei os cabelos
a minha imagem no espelho
me diz que eu tô vivo
e nem quero saber qual a tua opinião
que eu sei que transo loucuras
em meio a fel, café com leite, alcatrão
Entro pela rua que vai me levar
à casa daquela ingrata
e eu nunca vou chegar
descolo uma nota preta, uma mulher barata
eu curto e descurto
eu ponho e desponho
eu faço e desfaço
a minha solidão
e enfim é assim que me salvo
é assim que me viro e reviro
o resto é morte, contração cadavérica
bom gosto
putrefação
(Fernando Pellon)
Atravessando o túnel
Um dia sei
Vou encontrar a paz
A paz do outro lado
Pois meu lado é o de lá
Rever a velha carta
Posta fora do baralho
Sonhar o velho sonho
Tantas vezes desejado
Ser como a arte aqui proscrita
Culminando em eternidade
Um dia sei
Vou me encontrar no céu
Com papai Fidel
– Hija, no eres feliz?