Letras e partituras
(Fernando Pellon)
Eu ingeri uma dose letal de veneno
E saio pela cidade
Tudo está consumado
Agora é fatalidade
O porvir então se resume
Em mera questão de tempo
Eu condensei meu futuro
Perspectivas de vida
Em parcos, fugazes momentos
E pelas ruas vou me liberando
Quebrando vidraças
Desacatando a autoridade
Blasfemando contra a vontade de Deus
Contra a Pátria
E a Propriedade
A agonia de um suicida
É a mais fiel expressão da liberdade
Uma nau sem amarras
Que os ventos da sorte
Conduzem ao porto, à morte
Sempre gostei do vermelho
“A cor do pavilhão é a cor
Do nosso coração”
E tento sem hesitar
Com um objeto cortante
Seccionar a jugular
Então, numa poça de sangue
Descubro afinal que a felicidade
É ver enfim satisfeitas
Com todas as letras
As minhas moribundas vontades.
(Fernando Pellon)
E aí,
Na sórdida mesa de um botequim
Um homem faminto chegou junto a mim
Dizendo que há dias que ele não come
Cortei um tasco do meu bife muito duro
Juntei dois pedaços de pão bem escuro
Fiz um sanduíche pra matar sua fome
Há quem diga
Que a tristeza foi embora
Há quem viva
Num verdadeiro mar de rosas
Mas a lama
Que suja as calçadas não deixa esquecer
Que a vida
Pra uns é fácil de gozar
Enquanto que pra maioria
Difícil mesmo é levar
E aí,
Na sórdida mesa de um botequim
O homem comeu e olhou para mim
Como quem pergunta:
“E agora?”
Pensei
Chamei o garçom, pedi a dolorosa
Paguei a despesa, inventei a desculpa:
Estou atrasado, preciso ir embora.
(Fernando Pellon)
Era um homem escuro
Sem passado, nem futuro
Com presente de bebida e solidão
Nascido ao acaso, alvo de descaso
Fruto de um caso qualquer
Entre um pai e outra mulher
Seu corpo
Efeito, e não causa, do lixo das ruas
Purgatório de uma alma
Tão pura
Mas não sei se pelo frio
Pela fome ou pesar
A morte um dia decidiu chegar
Morte, que é parte integrante da gente
Sobretudo de alguém
Simplesmente indigente
Pois é sempre num cadáver
Com rosto marcado de dor
Que estuda anatomia
O futuro doutor.
(Fernando Pellon)
Eia, pois, ó ricos chorai
Por causa das misérias que virão sobre vós
Vossas vestes serão comidas pela traça
As riquezas, ouro e prata, consumidas na ferrugem
Juntastes em vida um tesouro de ira e hipocrisia
Que deporá contra vós no Juízo do Último Dia
Eia, pois, ó ricos chorai
Por causa das misérias que virão sobre vós
Eis que o salário, por vós tão defraudado,
Dos que ceifaram vossos campos ou trabalharam em vossas fábricas
Ergue aos céus uma voz de vivo clamor
Que por certo será eloqüente aos ouvidos do Senhor
Eia, pois, ó ricos chorai
Por causa das misérias que virão sobre vós
Perseguistes o justo usando de tirania
E ele não resistiu à vossa condenação
Vivendo em delícias e luxúrias sobre a terra
Cevastes vossos corações para o dia da imolação.
Eia, pois, ó ricos chorai
Por causa das misérias que virão sobre vós
(Fernando Pellon)
Ontem adentraste meu recinto de trabalho
Te acercaste de mim
Pedindo teu saldo bancário
Depois depositaste em tua conta
Um cheque polpudo
Rubricado por estranho pseudônimo
Teu olhar empedernido
Me agride, me esculacha
Eu que sou um simples caixa
Que vive de economia
E na poupança só tem a grana
Da empenhada aliança
Sei que és executiva
Bem ativa e sucedida
Mas a mim tu não enganas
Extorquir dinheiro dos bacanas
Só por folia
Constitui a tua falsa cleptomania.
(Fernando Pellon)
Talvez por obra do ventilador
Ou da noite, num golpe furtivo de ar
O fato patente
Que me desnorteia
Tão claro e evidente
É ver baixa a temperatura
Do nosso ambiente
Sentir o calor se esvaindo
Gradativamente
Conheço o carisma dos corpos
No discurso do amor
E das faces a expressão
Na alegria ou na dor
Mas se a força do gelo
Vem de repente
Tolher todos os movimentos
Eu sei
Está morto
O que havia por dentro
E, então, no pudico marasmo
De nossas noites desnúpcias
Me violenta a tua frieza
Com insana volúpia.
(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)
Endereço: Rua Senhor dos Passos
Rio de Janeiro
Sobrados alquebrados pela ação do tempo
Coisas humanas
Lixo e poeira sujam o calçamento
Endereço: Rua Senhor dos Passos
Um cheiro de mofo
Infiltrações antigas vão do piso ao forro
Paredes maculadas
Por tecidos necrosados e grandes varizes
Endereço: Rua Senhor dos Passos
Pulmão da cidade
Onde faz a hematose nossa sociedade
Sangue venoso
Células impregnadas de ansiedade.
(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)
Tornaram-se mais frequentes
Os murmúrios
Que percebo a meu redor
E isto me sobressalta
Hordas incontroláveis
Marginais dizimados
A queda surda de corpos ao acaso
Policiais equipados
O poder judiciário
Sentenças executadas com as próprias mãos
A ronda carioca assim vigia
Subúrbios que coalescem
Em torno da cidade sitiada
(Fernando Pellon)
(Inspirada em enredo do bloco “Nem Muda Nem Sai de Cima” – Muda da Tijuca/Rio de Janeiro)
Onde é que você mora,
Qual paisagem escondida?
Em que Muda, qual Tijuca?
Lá também quero morar
A turma continua maluca
E ainda batuca no asfalto
E solta seu corpo e seu verso
O movimento leve
No espaço livre
Mas um poeta não se faz com versos
É o risco
É estar sempre a perigo
Inteiramente doidos, loucos varridos
Os pássaros sempre cantam nos hospícios
Onde é que você mora,
Qual paisagem escondida?
Em que Muda, qual Tijuca?
Lá também quero morar
O cenário é o personagem vivo
No asfalto, no alto falante
A imagem tensa
No espaço do verso
No universo da mente
A turma continua maluca
E ainda batuca
Na beira do precipício
Inteiramente doidos, loucos varridos
Os pássaros sempre cantam nos hospícios
(Fernando Pellon e Paulinho Lêmos)
Preservada do pecado
Que decerto mora ao lado
Elzira, Elzira,Elzira
Sofria de arritmia
E pouco lhe comprazia
Essa disfunção cardíaca
Sua vida era regrada
Repetição de momentos
Nada brusco ou irregular
A mesma sucessão de eventos
Como se fossem batimentos
Preservada do pecado
Que decerto mora ao lado
Elzira, Elzira, Elzira
Sofria de arritmia
E pouco lhe comprazia
Essa disfunção cardíaca
E os impulsos elétricos
Que estimulam o coração
Em contrações lascivas
Sempre ocorreram com ela
De maneira inofensiva
Preservada do pecado
Que decerto mora ao lado
Elzira, Elzira, Elzira
Sofria de arritmia
E pouco lhe comprazia
Essa disfunção cardíaca
Talvez as perturbações
De ordem moral ou estética
Pudessem lhe alterar o ritmo
Ou mesmo levar à morte
Numa emergência médica
Preservada do pecado
Que decerto mora ao lado
Elzira, Elzira, Elzira
Sofria de arritmia
E pouco lhe comprazia
Essa disfunção cardíaca
(Fernando Pellon)
Solimar abriu um botequim
E cochila atrás do balcão
Sem saber
Que de forma insuspeita
Eu ando à espreita
Com toda a atenção
A esperar um motivo qualquer
Uma distração
Para lhe confessar
O amor que eu sinto por ela
E que me faz sonhar
Solimar vivia a bailar
Saltitante rainha dos salões
Meu olhar sempre a se deleitar
Com sua esguia figura
Indo de mão em mão
Era lindo poder perceber
As diversas facetas do meu bem querer
Um tango, um bolero
Um fox, um samba-canção
Solimar viu o tempo passar
Toda sua beleza fenecer
Viu o brilho do seu olhar
A idade ofuscar
Até desaparecer
Só não viu que ao alcance da mão
Sempre esteve presente
O meu coração
A bater sem escolha
Um escravo de tanta paixão.